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aproximação entre tecnologia e seguros tem ganhado contornos cada vez mais sofisticados. Startups de setores externos — como saúde, finanças e mobilidade — vêm ocupando posições de relevância estratégica ao se tornarem fornecedoras de dados, operadoras de jornadas digitais e canais indiretos de distribuição. Essa movimentação demonstra uma tendência de diversificação e uma mudança no eixo da inovação, que passa a orbitar também fora do núcleo tradicional do mercado segurador. Essas empresas, que muitas vezes surgem para resolver falhas em outras cadeias de serviço, acabaram por criar soluções que repercutem diretamente na lógica de proteção. Ao operarem com escalabilidade digital, domínio de dados sensíveis e foco em públicos até então pouco assistidos, elas influenciam desde a criação de produtos até os modos de precificação e relacionamento com o cliente.

Healthtechs alinham prevenção e inteligência de risco

No setor de saúde, a presença das healthtechs já deixou de ser periférica. Dados do Distrito Healthtech Report indicam que o Brasil concentrou, em 2022, 62% das operações latino-americanas e atraiu US$1,4 bilhão em investimentos. Não se trata de volume apenas, mas da capacidade dessas startups de oferecer ferramentas que geram valor concreto para o setor de seguros. A Afya Limited, por exemplo, estruturou um portfólio que inclui empresas como a Wellbe, Lean Saúde e Caveo. Cada uma opera em um ponto-chave da jornada médica: prevenção, eficiência administrativa e gestão financeira. O que essas soluções compartilham é a produção e organização de dados com alto potencial de uso em análises atuariais, mitigação de riscos e projeção de custos futuros.

Esse tipo de dado, que tradicionalmente escapava às seguradoras, agora está sendo coletado e interpretado em tempo real. Com isso, torna-se possível calibrar produtos com mais precisão, reconhecer padrões de sinistralidade de forma antecipada e construir ofertas personalizadas que dialogam com perfis mais diversos — inclusive aqueles que, até pouco tempo atrás, permaneciam fora do radar das operadoras.

Fintechs expandem o alcance do seguro

O ambiente digital também tem reconfigurado o caminho pelo qual a seguradora chega até o cliente. No relatório “A revolução fintech em seguros”, a Deloitte Global já apontava para o crescimento de modelos baseados em automação, cobertura modular e personalização algorítmica. O que se vê hoje são fintechs aplicando essas ideias em produtos reais, com distribuição embutida em jornadas de consumo cotidianas. Um exemplo é o caso do Ica Bank: com base na análise de comportamento de sua base de clientes — mais de 125 mil usuários do cartão de benefícios — a fintech estruturou uma oferta de seguro saúde com rede própria em 120 municípios. O modelo, sem coparticipação e com foco na previsibilidade de custo, busca atender quem está fora dos planos privados tradicionais e encontra no serviço público uma resposta insuficiente.

Seguradora se especializa em parcerias com fintechs

Outra situação ilustrativa partiu de empresas como a 180 Seguros desenvolveram soluções pensadas sob medida para fintechs de crédito, com foco no seguro prestamista. O diferencial está na agilidade: a integração com sistemas parceiros pode ser feita em dias — uma ruptura em relação aos prazos históricos do setor. Além disso, ao se acoplar diretamente aos fluxos operacionais dessas fintechs, o seguro passa a ser acionado no momento exato em que se forma o risco — e não como uma adesão posterior.

Esse redesenho do canal de distribuição amplia a presença do seguro em contextos nos quais ele antes era ausente. Ele também exige que seguradoras e insurtechs adotem uma postura mais maleável, apta a dialogar com o dinamismo de parceiros cujas estratégias se baseiam em ciclos curtos, testes recorrentes e forte adaptação ao comportamento do usuário.

A mobilidade urbana ganha um novo mapa de riscos e oportunidades

A transformação da mobilidade urbana no Brasil também tem ampliado a complexidade do risco segurável. O crescimento da frota de veículos eletrificados — que ultrapassou 126 mil unidades em 2022, segundo a ABVE — aponta para desafios que extrapolam a lógica tradicional do seguro auto. A previsão da McKinsey, no estudo “Acelerando a mudança rumo à Mobilidade Sustentável no Brasil", é que os elétricos representem até 55% das vendas de novos veículos no país até 2040, o que exige mudanças profundas na estrutura dos produtos ofertados pelas seguradoras. Não se trata apenas de incluir novas coberturas, mas de lidar com componentes inéditos: baterias de alto valor, sistemas autônomos, infraestrutura de recarga e até tecnologias solares embarcadas. Esses elementos trazem novas variáveis para o cálculo de risco e demandam protocolos de sinistro mais complexos — muitas vezes, com envolvimento de fabricantes, desenvolvedores de software e plataformas integradoras.

Ao mesmo tempo, o comportamento dos consumidores também vem se alterando. A Pesquisa CNT de Mobilidade da População Urbana 2024 mostra que o uso de aplicativos de transporte saltou de 1% para 11,1% em sete anos, com queda no uso do transporte público tradicional. Isso significa que o deslocamento urbano se tornou mais fragmentado, mais flexível — e também mais exposto a riscos individualizados, como acidentes com motocicletas ou problemas em entregas sob demanda.

Veículos inteligentes, infraestrutura conectada e o papel da proteção

Nesse contexto, empresas como a Uber passaram a introduzir categorias específicas, como a Uber Green, voltada para veículos de baixa emissão. A meta é tornar 100% das corridas neutras em carbono até 2040. Do lado público, o programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover) busca acelerar a adoção de veículos elétricos e híbridos, com incentivos fiscais e metas definidas: até 2030, espera-se que até 30% dos novos veículos vendidos no país sejam movidos por fontes mais limpas.

Transformações de startups geram mudança no entendimento do risco e nos locais onde  a proteção deve estar presente

Essas mudanças ampliam a responsabilidade do setor de seguros. As apólices, que antes se restringiam a colisões, furtos ou danos materiais, agora precisam cobrir riscos ligados a falhas de software, ataques cibernéticos, mau funcionamento de sensores e instabilidades na rede de recarga. Há também a necessidade de definir novas fronteiras de responsabilidade civil em caso de falhas envolvendo automação veicular. O que se impõe, nesse cenário, não é uma simples adaptação técnica. É uma mudança no entendimento de como o risco se forma e onde a proteção deve estar presente. A cobertura passa a acompanhar não só o bem segurado, mas a lógica de funcionamento que sustenta seu uso.

Expansão do seguro para outros segmentos exige um setor aberto ao diálogo com quem já atua na borda da inovação

Ao cruzarem o setor de seguros com soluções em saúde, finanças e mobilidade, essas startups vêm deixando um legado mais profundo do que aparenta. Elas não ampliam a oferta de seguros e reconfiguram a noção de risco, de acesso e de relevância. Os dados que organizam, os fluxos que digitalizam e os públicos que alcançam estão moldando uma nova forma de proteger — mais contextual, mais precisa e, sobretudo, mais conectada à realidade contemporânea.

Essa expansão do seguro para outros segmentos exige um setor aberto ao diálogo com quem já atua na borda da inovação. Os desafios que surgem dizem respeito à tecnologia, aos produtos e ao próprio modo de pensar a proteção. Trata-se de ampliar as possibilidades de atuação. E esse alargamento depende de perceber o que essas startups estão fazendo, como estão construindo confiança, e de que maneira o seguro pode, nesse novo arranjo, ser útil de forma cotidiana e integrada.

Postado em
23/4/2025
 na categoria
Inovação

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